Sessão de apresentação da biografia do Santo Condestável, do Pe. Ricardo Figueiredo. Fotografias, texto da conferência do general Sousa Pinto, áudio da intervenção de D. Rui Valério e da sessão completa.
«Cavaleiro Invencível, Cristão Exemplar»
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- Áudio completo da sessão
- Áudio da introdução: Pe. Miguel Cabral, Pe. João Paulo e Pe. Ricardo Figueiredo
- Áudio da conferência do Patriarca de Lisboa
- Áudio da conferência do General Sousa Pinto
Texto da intervenção do General Alexandre Sousa Pinto
Quando o Pe Miguel Cabral me telefonou a convidar-me para estar aqui hoje a apresentar este livro imediatamente aceitei o honroso convite, porque de há muito sou um interessado pelo nosso Santo Condestável e porque o convite era feito por um sobrinho de quem muito gosto.
Só depois, matutando nesse convite, perguntei a mim próprio porque se teria o Pe Miguel lembrado de mim para o efeito? Não era certamente por ser seu tio, porque tios tem ele de sobra para escolher. Provavelmente era por me saber militar e achar que para falar de um livro sobre o Santo Condestável talvez fosse conveniente arranjar um profissional da mesma arte. Por outro lado, lembrei-me que a apresentação seria no Oratório de S. Josemaria Escrivá de Balaguer, que ele dirige, e que aqui impera o Opus Dei de que ele é membro. Imediatamente relacionei a apresentação com o facto de que o Opus Dei é uma instituição católica cujo fim último é a difusão em todos os ambientes da sociedade de uma profunda tomada de consciência do chamamento universal à santidade e ao apostolado no exercício – livre e responsável – do próprio trabalho profissional. O Santo Condestável é o exemplo mais vivo que conheço dessa verdade porque, tendo por profissão a militar em época de profunda crise, jamais deixou de ter em conta o seu desejo de atingir essa mesma santidade, pelo que não poderia ser escolhido local e ambiente mais apropriado do que este para tal apresentação.
Mas depois soube que seria também apresentador da obra SªExª Reverendíssima, o Senhor D. Rui Valério, Patriarca de Lisboa. Voltei a matutar no convite e pensei então que a ideia seria um tratar da biografia espiritual de São Nuno enquanto o outro se debruçaria sobre a biografia laica do Santo Condestável. Mas, simultaneamente, lembrei-me que D. Rui Valério não se limita a ser Patriarca de Lisboa, lembrei-me que, tal como eu, ele é um oficial general como Administrador Apostólico da Diocese das Forças Armadas, isto é, é o único Bispo das Forças Armadas que antes de o ser já tinha sido capelão da Marinha no Hospital da Marinha e capelão da Escola Naval, provavelmente como guarda-marinha e 2º tenente. Militarmente foi condecorado com a Cruz de São Jorge pelo Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, com a Cruz Naval pelo Chefe do Estado Maior da Armada, com a Medalha de D. Afonso Henriques pelo Chefe do Estado Maior do Exército, com a medalha de Mérito Aeronáutico pelo Chefe do Estado Maior da Força Aérea e com a Medalha de D. Nuno Álvares Pereira pelo Comandante-Geral da Guarda Nacional Republicana. Conhece as Forças Armadas muito bem por dentro e nesse sentido estaria em boas condições para tratar de ambas as biografias, a espiritual e a leiga de D. Nuno Álvares Pereira o Santo Condestável Nuno de Santa Maria. Acrescem duas coincidências interessantes: D.Rui Valério é natural de Ourém, terra de que D. Nuno foi o primeiro Conde, e eu pertenço às duas Dioceses que têm o Senhor D. Rui como Bispo, a de Lisboa e a das Forças Armadas.
Estas conjecturas levaram-me a decidir procurar que as minhas credenciais na História Militar de Portugal, depois de ter desempenhado durante 17 anos o cargo de presidente da Comissão Portuguesa de História Militar, me conduzissem pelo aprofundamento de algumas das considerações militares que, ao longo do texto, vão surgindo e que podem não ser claras para um leigo na matéria.
A obra que estamos a apresentar é uma biografia espiritual de São Nuno de Santa Maria, mas não pode deixar de abordar aspectos militares da sua vida em que as questões espirituais surgem e que D. Nuno tem que enfrentar. Quero agora, por isto, felicitar o Autor, o Pe Ricardo Figueiredo, por ter metido ombros a um aspecto muito pouco tratado, quase inédito, em tantas e tantas obras que, ao longo dos séculos, sobre esta figura maior da nossa História têm sido publicadas.
Começaria por lembrar que D. Nuno nasceu e viveu os primeiros 13 anos de vida em ambiente militar, saltando entre as várias sedes dos cavaleiros hospitalários de que seu pai era o prior. Passou pelo castelo da Amieira em Cernache do Bonjardim, onde nasceu, mas também pelas sucessivas sedes da Ordem em Belver e Crato. Na Idade Média o ensino militar exercia-se on job, principiava-se muito novo como pajem de cavaleiros credenciados e depois de considerados aptos passavam a escudeiros e estes só eram cavaleiros depois de provas dadas em combate real ou, no mínimo, em justas preparadas com grande esplendor e tanto quanto possível próximas de um combate real. Nun’Álvares estava rodeado pelos melhores cavaleiros que então havia em Portugal porque os hospitalários exerciam militarmente nas campanhas da Ordem na Terra Santa, em Chipre, em Rodes e no Mediterrâneo, estando em permanente actividade militar e rodando entre os trabalhos do Grão Mestrado ou os do Prior em Portugal. Traziam sempre novidades militares que D. Nuno com o maior interesse ia ouvindo e assimilando. Como referido na obra é com 13 anos que acompanha o Prior seu Pai a Santarém onde estava a Corte e tendo integrado uma missão de reconhecimento sobre castelhanos nas redondezas de Santarém, no regresso, é-lhe solicitado que dê a sua opinião sobre o que lhe fora dado ver, o que faz por forma a que a própria Rainha ali mesmo o faz seu escudeiro, deixando então a Ordem para passar a viver na Corte como escudeiro. Não se conhecem as condições em que foi feito cavaleiro mas sabe-se, como também se refere nesta obra, que casou aos 16 anos e foi viver para as Terras de Barroso, no Minho, de que se tornou senhor pelo casamento e ali permaneceu tendo entre doze a quinze escudeiros e vinte a trinta homens de pé. Isto significa que já era cavaleiro porque só estes tinham escudeiros a quem ensinavam para virem a ser cavaleiros e o número é indicativo de que a sua fama era já suficiente para tantos o quererem como mestre. Também aqui aproveito para esclarecer que os números de combatentes que constituíam as hostes e os exércitos são muito díspares nos diferentes relatos porque nem sempre esses relatos são feitos por quem está dentro da terminologia militar da época. Por exemplo, quando se fala de lanças não se está a falar de homens. Uma lança era constituída pelo cavaleiro, por dois ou três escudeiros (que podiam ou não seguir a cavalo) e por outros três a cinco peões, isto é uma lança teria entre cinco a 10 homens e entre 1 a 4 cavalos.
Uma interessante questão é a de que o Dr João das Regras expôs claramente que o legítimo pretendente ao trono era o Mestre de Avis (p. 37) o que me parece ficar mais claro dizendo que o Dr João das Regras claramente demonstrou que nenhum dos pretendentes era legítimo herdeiro pelo que seria legítimo aclamar o que fosse considerado melhor para o efeito. Claro que o caso da filha de D. Fernando era diferente porque essa estava considerada como legítima, mas o contrato do seu casamento não fora cumprido ilegalizando a conquista pelo marido do território português. D. João, Mestre de Avis, não herdou o trono, foi rei por aclamação, tal como três séculos depois o seu homónimo D. João IV.
Um outro aspecto importante é o reconhecimento do Mestre de Aviz para com o seu Condestável. Ao longo dos anos fê-lo conde de Ourém, de Barcelos, de Arraiolos, senhor de territórios emensos no Algarve Silves e Loulé; no Alentejo Vila Viçosa, Borba, Estremoz, Évora-Monte, Portel, Montemor-o-Novo; na Estremadura, Almada, Setúbal, Frielas, Unhos, Camarate, Colares; Porto de Mós, Rabaçal, Bouças, Alvaiazere, Terra de Pena, Terras de Basto; no Norte Guimarães, Ponte de Lima, Valença, Vila Real, Chaves, Bragança e Atouguia.
Convém agora lembrar que ainda estamos em plena Idade Média em que o Rei era um par inter pares, melhor dito, era um senhor feudal coordenador de outros senhores feudais, não havia a noção de estado, de nação, de país ou de patriotismo. No entanto Portugal, de certo modo, tinha escapado a esta situação porque o Condado Portucalense havia sido dado a D. Teresa e a seu Marido D. Henrique como um feudo cujo “coordenador” era o rei de Leão. No decorrer da primeira dinastia só as irmãs de D. Afonso III tinham tentado apresentar-se como senhoras de feudos ao nível do irmão que as meteu na ordem. Ora D. Nuno considerou as terras dadas por D. João não para as administrar em seu nome mas como feudos sob a sua completa propriedade. Daqui algumas quezílias entre ambos, quando D. Nuno entregou terras a outros sem dar cavaco ao rei e este o quis impedir de o fazer, o que D Nuno não aceitou. É neste problema que se baseia a célebre Lei Mental, publicada por D. Duarte, que D. João não passou da mente a lei para não ferir a amizade e o muito que devia a D. Nuno e mesmo D. Duarte só a publicou depois da morte de D. Nuno.
Talvez seja ainda interessante lembrar que D. Nuno era filho e neto de eclesiásticos. Seu avô era o célebre arcebispo de Braga D. Gonçalo Pereira e seu pai, como já vimos, o Prior dos Hospitalários em Portugal D. Álvaro Gonçalves Pereira. Ambos proeminentes figuras do clero mas, simultaneamente, altos membros da nobreza e, nesta qualidade, não deixavam de ter a característica, que a estes cabia, de serem cavaleiros com experiências reais de combate, o primeiro na batalha do Salado onde o segundo também esteve transportando consigo a “vera cruz de Marmelar” e depois, ao serviço da Ordem, esteve em Rodes combatendo os turcos nas galés dos hospitalários. No entanto, como membros do clero que também eram, haviam pronunciado os três votos de castidade, pobreza e obediência a que nem sempre conseguiram ser fiéis. D. Álvaro, nomeadamente, teve de várias senhoras 32 filhos dos quais D. Nuno era o 13º varão. Mais tarde, na corte, viveu como escudeiro de uma rainha cujo comportamento não era o melhor no que respeita à virtude da castidade e num ambiente pouco recomendável, bastando lembrar o assassinato da irmã da rainha, D. Maria Teles, pelo marido irmão do rei D. Fernando, crime instigado pela própria rainha para garantir que o cunhado não seria o sucessor do marido em vez da filha. D. Nuno, vivendo com eles, ia assistindo a tais infidelidades e, talvez por isso mesmo, indignado, tenha querido fugir-lhes ao longo da vida e, também por essa via, seguir o caminho da santidade.
D. Nuno não nasceu santo nem se tornou santo de um dia para o outro, ele foi santo percorrendo um caminho de amadurecimento e desenvolvimento pessoal (p. 61) tal como também não foi um génio militar por obra e graça do Divino Espírito Santo. D. Nuno, ao contrário de seu pai, nunca saíra de Portugal tendo assimilado o que ouvia aos hospitalários enquanto pajem e aos ingleses presentes na corte, combatentes na guerra dos cem anos, enquanto escudeiro da rainha, mostrando-se a par do que de mais moderno se praticava em termos de táctica militar. Ele estudou bem a matéria e soube aplicá-la na perfeição, conjugando esse saber com uma enorme capacidade de comando e chefia. Na realidade ele nada inventou mas, com o génio de que fora dotado, aplicou os vários conceitos conhecidos e por ele estudados ao concreto do território e da população em que vivia e, dando sempre o exemplo, postando-se no lugar de maior perigo, liderava indiscutivelmente; a sua simples presença era, por si só, um enorme factor do potencial de combate. São as suas características humanas e militares que levam D. João I e D. Filipa de Lancaster e escolhê-lo para aio do príncipe real D. Afonso, para o educar e aconselhar, e não tivemos a sorte de ver os resultados desse seu trabalho porque o príncipe morreu ainda novo não vindo a ser sucessor de seu pai, tendo D. Nuno mandado guardar luto oficial e organizado as exéquias solenes pelo príncipe (p.70).
D. Nuno é hoje, em Portugal, padroeiro da Arma de Infantaria (p. 72) e patrono do Estado-Maior-General das Forças Armadas Portuguesas, cujo padroeiro é S. Jorge. Por vezes as designações de padroeiro e de patrono prestam-se a alguma confusão. Eu entendo o padroeiro como o santo escolhido para protector e intercessor junto de Deus, enquanto o patrono me parece ser o patrocinador que dá o exemplo a seguir. No caso português, a Arma de Infantaria fez bem ao escolher um cavaleiro para seu padroeiro, pois S. Nuno de Santa Maria é garantidamente um excelente intercessor junto de Deus, enquanto a Arma de Cavalaria portuguesa, que sempre teve por padroeiro São Jorge, na primeira república laicizada, o preteriu a favor de Joaquim Mouzinho de Albuquerque, um herói mas um suicida que oferece dúvidas quanto à possibilidade de intercessão junto de Deus mas que, como indiscutível herói, pode ser um excelente patrono, tal como o condestável D. Nuno o é para o Chefe do Estado-Maior- General.
Para finalizar quero deixar a minha certeza de que, tal como o autor, considero que:
Nun’Álvares é santo porque foi sempre, em todas as circunstâncias da vida, um exemplo de fé, esperança e caridade.
Exemplo de fé quando, nas dificílimas condições de inferioridade em que por diversas vezes se encontrou face ao inimigo, nunca deixou de pedir a ajuda divina e de acreditar que ela lhe seria concedida estando certo, como estava, da razão da sua causa; mas, simultaneamente, não deixava de entender que a ajuda divina não dispensava os trabalhos dos homens, sendo conhecida a fala que dirigiu aos seus companheiros quando, ao saber-se da multidão dos inimigos a enfrentar na batalha dos Atoleiros que se avizinhava, deixando-lhes a opção de irem ou não com ele mas mostrando claramente que ele próprio iria fosse qual fosse o número dos que o acompanhassem.
Exemplo de esperança no futuro da sua terra e das suas gentes, futuro cuja garantia assumiu como missão pessoal conhecendo bem as mais que previsíveis dificuldades a enfrentar, missão de que só desistiu quando a considerou concluída e consolidada. Mais tarde, já irmão carmelita, dizia a quem o queria convencer a sair do convento que só sairia se um dia os castelhanos voltassem a passar a fronteira. Esperança ainda na certeza da vida para além da morte que lhe permitia enfrentar esta como natural e valendo a pena se com ela se obtivesse um bem maior do que o da própria vida.
Exemplo de caridade quando, nos campos de batalha, mandava socorrer os inimigos caídos da mesma forma e com o mesmo cuidado tido para com os nossos ou quando, sabendo-os em fuga e esfomeados, lhes mandava distribuir géneros ou, ainda, quando proibia vinganças e represálias sobre os prisioneiros; mas era também uma caridade a sua permanente preocupação com o bem-estar espiritual dos seus homens, sendo conhecida a exigência de trabalho árduo aos sacerdotes presentes em Aljubarrota nas últimas vinte e quatro horas antes da batalha para garantir que todos aqueles milhares de homens estariam confessados e tinham recebido a comunhão antes do combate; e é também conhecida a utilização que deu aos seus imensos bens, muito mais em proveito dos outros do que em seu próprio benefício; sabemos, ainda, de como não quis professar para, mantendo na sua mão os rendimentos que ainda possuía os poder utilizar em proveito da própria Ordem do Carmo ou dos pobres que a ele recorriam, fundando assim mundialmente os Irmãos Terceiros da Ordem e a ainda hoje conhecida em todo o mundo como Sopa dos Pobres.
Cedo, no entanto, deixou da haver dúvidas, até entre os próprios inimigos. É conhecida a visita nocturna que, em Almedina, é feita por dez soldados castelhanos que, com a perspectiva de morrerem no dia seguinte à mão dos portugueses, não queriam que tal lhes sucedesse sem antes terem visto o conde santo, isto é, D. Nuno, com pouco mais de vinte anos, já era visto como santo pelos seus próprios adversários.
D. Nuno morre no Convento do Carmo, rodeado por dois grandes amigos D. João I e D. Duarte, a 1 de Abril de 1431, ano em que morre também D. Beatriz, a pretendente derrotada e é, finalmente, concertada a paz com Castela. Viveu em período de grande crise e encontrou as forças humanas e morais que permitiram aos portugueses terem esperança no futuro. Por isso foi, desde sempre, um orgulho e uma devoção dos portugueses, católicos ou agnósticos.
O Infante D. Pedro, “o das sete partidas”, seu grande amigo e admirador, logo após a sua morte compôs uma oração onde o diz «modelo de príncipes, exemplo de senhores, espelho de contemplativo és tu, bem-aventurado Nuno! Tu foste firme e forte em combate, tu foste comedido e apiedado na vitória, tu foste justo e misericordioso na paz, tu foste devoto e obediente no claustro. Assim como em toda a situação te comportaste com dignidade e brio e como nos teus dias de vida alcançaste honra e glória, assim também alcançaste no céu a eterna bem-aventurança».
Nun’Álvares é, sem sombra de dúvida, o que sempre foi: o Santo Condestável.
Mais uma vez deixo os meus parabéns ao Autor por ter metido ombros a esta investigação, ao Pe Miguel Cabral por disponibilizar estas instalações para nelas se fazer a sua apresentação e agradeço a Sª Exª Reverendíssima o Senhor D. Rui por me ter dado a honra de me aceitar como parceiro nesta sessão.
Alexandre de Sousa Pinto