Notícia

E-peditório

Como noutras igrejas, estamos a testar um novo sistema de esmolas. Com artigo do Pe. Pedro Boleo Tomé

O peditório da Missa

Pedro Boléo Tomé

Quando estudava teologia em Pamplona a minha bisavó, já quase com cem anos, foi-me visitar por três vezes. Era muito piedosa, de Missa diária e ansiava por ter um bisneto padre. Isso fazia-a atravessar a península Ibérica de carro, aproveitando a boleia do meu pai e dos meus irmãos, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Recordo perfeitamente uma vez que fomos à Missa na Clínica da Universidade de Navarra. Gostou muito da capela e da celebração, mas terminou desconcertada.

- «Esqueceram-se do peditório» - disse com afetação.

Sorri e expliquei:

- «Avó, é que a Clínica não é uma paróquia. Não é preciso fazer peditório porque as pessoas que frequentam a capela são doentes ou funcionários da clínica e esta inclui no seu orçamento as despesas referentes à capelania. De qualquer forma, há ali umas caixas onde se pode deixar um donativo, se se desejar».

Ela ouviu, mas discordou. Continuava incomodada. Aquela Missa tinha ficado, de algum modo, incompleta. Faltava-lhe algo. Eu sorri e encolhi os ombros sem entender aquela fixação. Só muitos anos mais tarde é que a compreendi. Sim, quando refletia sobre o significado da preparação dos dons e do ofertório da Missa. Antes de a compreender, ainda me lembro de contar divertido este episódio e de o relacionar com aquela anedota ateia caricaturando a religião, em que um grupo de tripulantes de um avião é informado pelo capitão de que o aparelho tem uma avaria e estão a despenhar-se. Depois de um momento de pânico, alguém sugere que se faça um ato religioso. Porém, naquele avião não havia ninguém que soubesse rezar. Por fim, levanta-se um senhor que pega no chapéu e começa a fazer um peditório. Estava feito um «ato religioso».

Com a indignação que eu e, certamente, outros cristãos ouvimos esta anedota, diziam alguns fiéis ao cardeal Lustiger: «Resulta indignamente utilitário fazer o peditório na Missa. Incomoda! Poderia introduzir-se noutro momento, tendo em conta o estado de espírito da assembleia, por exemplo, à saída, para não perturbar os fiéis».[1] Ao que o cardeal responde que aquele é mesmo o momento adequado para o peditório. Sim, no momento prévio à apresentação dos dons, no início da liturgia eucarística. «Porque a oferta dos dons não é uma espécie de imposto, nem uma contribuição, como se fosse o preço de um lugar. É muito mais que isso! É o penhor concreto do amor fraterno e a participação dos fiéis na vida material e nas necessidades da Igreja».[2]

Efetivamente, se refletirmos um pouco, vemos como é natural em nós o «querer dar» como manifestação do nosso agradecimento. Se iniciamos a Liturgia eucarística é porque queremos agradecer. Esse é o significado da palavra Eucaristia.[3] Ora, não é próprio daquele que está agradecido oferecer, dar alguma prenda, ainda que humilde? Ter convivido com muitos médicos, alguns que trabalhavam em hospitais ou centros de saúde de província, provou-me isso sobejamente. Quanto mais agradecidas as pessoas estavam, mais davam. O agradecimento levava à generosidade e, desprendiam-se do pouco, por vezes mesmo muito pouco, que tinham. Pois bem, essa característica humana aplica-se à nossa relação com Deus. Basta pensar nos sacrifícios de Abel e Caim.[4]

Se vivemos bem a Eucaristia teremos, necessariamente, desejos de dar. De dar algo. Dar seja o que for, material ou espiritualmente. A nossa alma sacerdotal reclama-o. De dar a Deus e dar aos irmãos, principalmente, aos que mais necessitem. E, como vimos no artigo anterior, com a Oração Universal, imediatamente prévia ao peditório da Missa, acabámos de pôr em ato a nossa alma sacerdotal: levantámos o coração para Deus e intercedemos por todos os homens e, em especial, pelos mais carenciados. Com os olhos postos no altar, não será natural selar a nossa oração com a prova concreta, material, da nossa generosidade?

Recuemos agora no tempo e olhemos para como se vivia esta parte da Santa Missa na antiga Igreja: «Imaginai uma Missa no tempo de S. Gregório Magno, por volta do ano 600. Terminou a ante-Missa, e foram despedidos os catecúmenos. Apenas assiste a comunidade dos fiéis. Formava-se uma procissão, que se encaminhava para o altar. Em longas filas, os fiéis dirigiam-se para o ato de oblação. Cada um levava um pedaço de pão candial, e um jarrinho de vinho. Alguns levavam, também, outros dons: lã, azeite, fruta, cera, prata, ouro; aquilo que cada um preferia, o que mais estimava. Durante a lenta marcha, o coro entoava um salmo (…). Que se fazia com as dádivas? O que era necessário ao sacrifício, ou seja, o pão e o vinho, era levado para o altar, pelo diácono. O resto era guardado para sustento dos pobres e uso da Igreja».[5]

Suarez questiona-se como se origina este cerimonial tão aparatoso para um ato tão singelo: «Simplesmente pela significação que desde o princípio teve: nada menos que a participação material dos fiéis no Sacrifício, quer para a ação eucarística, quer para as necessidades da Igreja ou o socorro dos pobres. E foi tal a importância que se lhe deu, que a oferenda significava a comunhão do fiel com a Igreja, o sinal exterior de ter parte na Fé».[6]

O próprio Catecismo da Igreja Católica assinala a antiguidade e sentido desta recolha de ofertas, juntamente com o pão e o vinho:

«Desde o princípio, com o pão e o vinho para a Eucaristia, os cristãos trazem as suas ofertas para a partilha com os necessitados. Este costume, sempre atual, da “colecta” (cfr. 1 Cor 16, 1) inspira-se no exemplo de Cristo, que Se fez pobre para nos enriquecer (cfr. 2 Cor 8, 9)[7]

Para sublinhar esta antiguidade o Catecismo cita a Apologia de S. Justino:

«Os que são ricos e querem, dão, cada um conforme o que a si mesmo se impôs; o que se recolhe é entregue àquele que preside e ele, por seu turno, presta assistência aos órfãos, às viúvas, àqueles que a doença ou qualquer outra causa priva de recursos, aos prisioneiros, aos imigrantes, numa palavra, a todos os que sofrem necessidade».[8]

E aquilo que se vivia na antiguidade é o que a Igreja prescreve hoje:

«Ao iniciar a liturgia eucarística, levam-se para o altar os dons, que se vão converter no Corpo e Sangue de Cristo. (…)

Além do pão e do vinho, são permitidas ofertas em dinheiro e outros dons, destinados aos pobres ou à Igreja.»[9]

Há, portanto, dois tipos de ofertas: uma destinada diretamente ao sacrifício eucarístico e outra, ao exercício da caridade e às necessidades da Igreja. Em ambos os casos o fiel é chamado a unir-se ao sacrifício de Cristo e a oferecer-se pessoalmente.[10]

Insisto: Se vivemos bem a Eucaristia teremos, necessariamente, desejos de dar. De dar algo. Dar seja o que for, material ou espiritualmente. A nossa alma sacerdotal reclama-o. Vi-o materializado na minha bisavó, habituada a dar algo do que era seu, a desprender-se de alguma quantidade, ainda que pequena, todos os dias, durante o ofertório da Missa, unindo essa pequena esmola aos dons que a Igreja depositava sobre o altar. Sim, agora, muitos anos depois, compreendo-a.

[1] LUSTIGER, J-M. A Missa, Editorial A. O., 2003, p. 106.

[2] Ibíd.

[3] Cfr. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 1328

[4] Cfr. Gen 4, 3-4.

[5] PIO PARSCH, Sigamos la Santa Misa, p. 73, in: SUAREZ, F, O Sacrifício do altar, Edições Prumo, 1989, p. 128.

[6] Ibid.

[7] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 1351.

[8] S. JUSTINO, Apologia, 1, 67, 6: CA 1, 186-1888 (PG 6, 429).

[9] MISSAL ROMANO, Introdução Geral ao Missal Romano, n. 73.

[10] Cfr. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 2100.

* este artigo foi publicado na Celebração litúrgica